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Ao tratar de responsabilidade civil dos intermediários, o Marco Civil da Internet no Brasil estabelece uma regra: não se pode exigir das empresas privadas, mas do Poder Judiciário, o papel de decidir o que é lícito ou ilícito, e o que deve ser removido ou não das redes sociais. Se a decisão judicial será veloz ou atrasada, a culpa não é da legislação que simplesmente replicou, para a Internet, os mesmos princípios, fundamentos e objetivos assegurados pela Constituição Federal de 1988. Essas considerações se sustentam inclusive no período eleitoral.
Mas o “Grupo de Apoio sobre Criminalidade Cibernética” da Câmara Criminal do Ministério Público Federal (MPF) publicou o documento “Fake news e como investigar”, de autoria das procuradoras Neide M. C. Cardoso de Oliveira e Silvana Batini Goés. A título de orientar o trabalho do MPF no enfrentamento da propagação de notícias falsas, “um dos mais importantes desafios das eleições gerais de 2018”, o texto se mostra bastante preocupante. Uma análise crítica pode identificar pelo menos nove pontos problemáticos.
Três estão presentes no trecho: “O primeiro passo para se investigar uma notícia falsa divulgada na Internet é a identificação do provedor de aplicativo à internet (Facebook, Twitter, Youtube/Google, WhatsApp, site na web, etc), que publicou aquela notícia falsa/criminosa, e essa identificação é feita nos sites do www.registro.br ou whois (informa se provedor está no exterior), se não for de fácil percepção de que é brasileiro”.
O primeiro problema parece é falar em “provedor de aplicativo à internet”. O MPF tem o dever de conhecer a terminologia legal do Marco Civil, que trata do “provedor de aplicações de internet”, ao lado do “provedor de conexão à Internet”. Não se confundem os conceitos de “aplicação” e “aplicativo” (o popular “app”): se a Internet oferece incontáveis usos, qualquer modalidade de uso particular é uma aplicação. Em seu universo mais restrito, apps são programas de computador (ou celular), que podem inclusive não operar conectados à Internet. Parece pouca coisa, mas denota um cuidado abaixo do que se pode esperar, especialmente no campo da legalidade estrita do direito penal.
Segundo problema: o texto fala em “provedor (…) que publicou”. Todavia, quem publica é a pessoa que usa a aplicação. O provedor apenas provê o serviço online, que é utilizado por quem publica. A aplicação não é agente da publicação: é um “lugar” onde conteúdos são publicados, ou um “meio” pelo qual ocorre a publicação. Assim como a bic apenas provê a caneta, e quem escreve é a pessoa que segura a caneta. Não se pode tratar as plataformas de publicação de conteúdo por terceiro como se fossem veículos de imprensa tradicionais. Jornais, impressos ou na rede, somente publicam notícias e matérias de seus repórteres após edição e curadoria. Plataformas online não revisam nem editam antes de haver a publicação.
Terceiro problema: “essa identificação é feita nos sites do www.registro.br ou whois” De um lado, saber qual aplicação foi usada é uma obviedade. Não há necessidade de investigação nenhuma. Não precisa consultar outro site nem serviço. Em regra, qualquer pessoa tem capacidade de olhar para um conteúdo e identificar, de pronto, em qual aplicação de Internet ela foi publicada. De outro lado, os sites registro.br (apenas para sites no Brasil) e whois (para todo o mundo) apontam apenas a pessoa individualmente responsável por um endereço web como um todo. Não servem para dizer quem publicou um conteúdo em uma dada plataforma online. Em um exemplo didático: na busca por um post no Facebook, o whois apontará se tratar de um site sob responsabilidade do Mark Zuckerberg; e o registro.br vai dizer apenas que não é um site registrado sob o domínio “.br”.
Os próximos problemas são encontrados quando as procuradoras escrevem que “deve ser solicitado (…) a preservação (sic) de todos os elementos referentes àquela publicação falsa/criminosa (com identificação do nome da URL ou ID correta do perfil, de um grupo; de um vídeo etc). (…) Não é suficiente o nome do Perfil, por exemplo, no caso do Facebook ou envio de uma imagem, obtida com um snapshot da tela”. O quarto problema é: se a publicação foi acessada, pode ser feito congelamento da tela, ou “print screen”, acompanhado da anotação adequada do endereço URL. Todos os dados podem ser preservados de forma mais ágil e mais simples, sem a catraca de uma solicitação. E quinto defeito: a afirmação do MPF de ser o print insuficiente não se embasa em nada. Pode-se inferir que em algum caso concreto tenha sido feito apenas o congelamento da imagem, sem a anotação do endereço web que permitisse acessar o conteúdo. Mas nenhuma referência permite entender a origem ou o fundamento dessa assertiva.
Ao defender a brevidade na solicitação de preservação da notícia falsa, o documento se justifica: “muitas vezes, o usuário a retira logo da Internet e sem a publicação e sua identificação não é possível iniciar uma investigação”. O sexto problema é que dificilmente um conteúdo é de fato completamente eliminado da Internet. Uma solicitação posterior, devidamente fundamentada e identificada, pode levar o Facebook, por exemplo, a colaborar na recuperação do que tenha sido indisponibilizado ao público pelo próprio autor de uma notícia falsa.
Sétima questão: o documento orienta a “identificar o provedor de conexão (as operadoras de telefonia ou telecomunicações, que ofereçam banda larga)”: pode ser um passo completamente desnecessário, se o perfil da pessoa que publicou contiver os dados necessários para o MPF iniciar a investigação ou mesmo a ação judicial.
O oitavo problema é grave. O documento sugere que o MPF se valha de “medida cautelar de busca e apreensão do material divulgado, apreendendo-se o dispositivo para posterior perícia”. A apreensão se mostra desproporcional e desnecessária. Não faz sentido apreender o “material divulgado”, se ele está publicado na Internet, não é secreto e já foi acessado desde o início, tendo sido inclusive preservado; nem faz sentido apreender, para perícia, “o dispositivo” eventualmente utilizado para a publicação, havendo ou não provas materiais de autoria. O acesso físico ao computador ou celular não vai permitir identificar qual o ser humano que utilizou a aplicação para realizar a publicação daquele conteúdo propriamente. E a restrição de acesso ao dispositivo impediria incontáveis outros usos legítimos, desde o recebimento de ligações até o acesso da pessoa a documentos eletrônicos privados e não vinculados à situação em exame.
Ainda sobre a apreensão, destaca-se o nono problema. Dizem as procuradoras: “A dúvida surge quanto à arquivo armazenado ‘nas nuvens’”. Ora, tratando-se de armazenamento de arquivos em nuvem, não há espaço para dúvida: a apreensão de equipamentos pessoais é uma medida equivocada. E a pergunta final: qual a finalidade de acessar a nuvem quando se tratar de um conteúdo publicado na Internet?
O período eleitoral é muito caro e sensível para a democracia. Sua importância extrapola aspectos sociais e tecnológicos, e deve sim poder contar com a segurança jurídica. Não o poder econômico ou político, mas o equilíbrio do direito deve oferecer o parâmetro justo para situações de conflito de pretensões, inclusive no tocante às fake news. Responsabilidade jurídica civil, criminal e eleitoral são respostas cabíveis, pelas quais a sociedade anseia, para poder estar devidamente informada, com notícias elogiosas e críticas, ao decidir quem ocupará os cargos de governo pelos próximos anos.
Mas esse remédio jurídico, ao combater mentiras, e mesmo durante o curto tempo do processo eleitoral, só pode ser justo se obtido por meio do devido processo legal. Não imprecisões terminológicas, desconhecimento da tecnologia, nem medidas judiciais inadequadas, mas o devido processo, repetido, reproduzido e disseminado. Um Estado cuja política padrão de combate a ilegalidades seja atuar ilegalmente, pode até se conceber como muito bem intencionado, mas desde o início está apenas produzindo mais problemas do que aqueles que pretende enfrentar. E depois não haverá a quem recorrermos
Paulo Rená da Silva Santarém – Mestre em Direito, Estado e Constituição (UnB). Professor de Responsabilidade Civil (UniCEUB) e pesquisador (Cultura Digital & Democracia). Conselheiro da ONG Instituto Beta: Internet & Democracia. Foi gestor da elaboração do Marco Civil da Internet no Brasil (Ministério da Justiça).
Fonte: JOTA Info
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